O ar empesteado e as fezes espalhadas no chão foram apenas o
primeiro sinal, quando a equipe do Ministério do Trabalho e Emprego começou a
fiscalização, de que eram graves os problemas trabalhistas na Mina do Pico. Ao
final do primeiro dia de inspeção, o canteiro foi interditado e a Vale
responsabilizada por submeter 309 pessoas ao trabalho análogo ao de escravo.
Além do ambiente "repugnante”, nas palavras dos auditores fiscais da
Superintendência Regional do Trabalho e Emprego de Minas Gerais, os
trabalhadores eram submetidos a jornadas exaustivas, condições degradantes e
foram vítimas de fraude, promessa enganosa e ameaça. A inspeção, que teve
início no dia 2 deste mês, autuou a empresa por 32 infrações trabalhistas.
As vítimas eram motoristas que levavam o minério de ferro pela estrada
particular da Vale que liga duas minas em Itabirito. Embora fossem empregados
por uma empresa subcontratada, a Ouro Verde, os auditores consideraram a
terceirização como ilícita e responsabilizaram a Vale.
Procurada pela reportagem, a mineradora encaminhou nota apresentando a Ouro
Verde como única responsável pelas infrações: "A Vale informa que a empresa
contratada, Ouro Verde, teve seu canteiro de obras inspecionado pelo Ministério
do Trabalho, quando foram definidas adequações no local necessárias e
relacionadas à legislação de saúde e segurança. A contratada foi formal e
imediatamente notificada pela Vale a providenciar essas adequações” (leia a
nota na íntegra).
Mas os órgãos fiscalizadores têm uma visão diferente: "A Vale sabia de tudo e
deixou correr solto. Temos um relatório em que eles detectam e registram mais
de 30 inconformidades nessa terceirizada”, diz o auditor fiscal Marcelo Campos,
coordenador do Projeto de Combate ao Trabalho Análogo ao de Escravo em Minas
Gerais e responsável pela ação.
"A Vale é a responsável por esses motoristas, não há dúvida disso”, afirma a
procuradora Adriana Augusta de Moura Souza, que abriu um inquérito no
Ministério Público do Trabalho para investigar a caracterização de trabalho
escravo. Ela lembra que, em 2013, uma sentença judicial já proibia a Vale de
terceirizar os motoristas internos. "A sentença é clara, o juiz cita
expressamente a questão do transporte como atividade que não pode ser
terceirizada”, diz a procuradora. Além desse, há diversos outros casos em que a
justiça vedou a terceirização.
A Vale contesta essa sentença e se recusa em assumir a contratação dos
trabalhadores. A multa acumulada pela "desobediência” está em R$ 7 milhões –
equivalente a menos de 1% do lucro da empresa em 2014.
Apesar da dor de cabeça com a Justiça, essa ainda parece ser a solução que
apresenta o melhor negócio para a empresa. Segundo levantamento da procuradora
do MPT, mais de 50% das atividades realizadas dentro do complexo minerário da
Vale são terceirizadas, da implosão de rochas ao transporte. Quanto mais a empresa
terceiriza, observa a procuradora, piores são as condições ofertadas aos
trabalhadores.
Jornada exaustiva, sem água e sem banheiro
Devido ao estado de calamidade instalado no banheiro da Mina do Pico, os
motoristas eram obrigados a fazer suas necessidades na estrada e não podiam
tomar banho ou trocar de roupa ao fim do expediente. Voltavam para casa com
roupa e pele sujas.
Tudo no ponto de parada estava tão sujo que ninguém tinha coragem de beber do
bebedouro, que ficava logo ao lado do banheiro empesteado, lembra um motorista
com mais de 30 anos de experiência que falou com a reportagem sob a condição de
anonimato. "Até água pra beber tinha que levar de casa. Fazia mais de 20 anos
que não via serviço ruim assim. Foi o pior da minha vida.”
Ele lembra que era obrigado a fazer horas extras. "A gente fica com sono, é
perigoso”. A jornada exaustiva, em que a pessoa trabalha tanto e de forma tão
intensa, que coloca em risco sua saúde, segurança e vida, foi caracterizada
depois que os auditores contaram 2.777 turnos que excediam os limites
permitidos.
Em um caso, um motorista dirigiu por 23 horas com apenas um intervalo de 40
minutos. Outro trabalhou do dia 14 de dezembro a 11 de janeiro sem nenhum dia
livre – nem mesmo o natal ou o primeiro de janeiro. "Foram muitos os casos de
não concessão das horas de repouso entre os turnos, isso tipifica o artigo 149
do Código Penal, que é reduzir alguém a condição análoga à de escravo”, afirma
Aloísio Alves, procurador do MPT que recebeu denúncias sobre jornada excessiva
na Ouro Verde e acompanhou os primeiros dias da fiscalização.
Promessas enganosas e ameaças
A supressão do tempo de descanso era incentivada pela empresa por meio de
campanhas que ofereciam prêmios pelo aumento da produtividade, o que é proibido
em atividades que envolvem risco. Nos depoimentos aos auditores, motoristas
revelam que substituíram o almoço por bolachas e que passaram a dirigir na
velocidade máxima permitida. Eles citam acidentes que teriam acontecido depois
que a campanha teve início. "A gente começou a ver mais ultrapassagem perigosa.
É caminhão pesando 100 toneladas ultrapassando caminhão de 30 metros de
comprimento”, diz o motorista que não quer se identificar.
Tudo isso para receber um acréscimo de R$ 200 a 300 no vale-refeição e para
entrar no sorteio de uma moto e um aparelho de TV. Premiação que, aliás, nunca
veio. Quando perceberam que a recompensa pelo esforço extra não fora
depositada, alguns motoristas começaram a reclamar. Alguns pararam de trabalhar
em sinal de protesto.
Foi então que as ameaças teriam começado. Segundo depoimentos registrados pelos
auditores, o responsável pelos motoristas na Ouro Verde teria rasgado o papel
onde o prêmio estava anunciado e agredido verbalmente os trabalhadores,
humilhando e ameaçando de demissão quem reclamasse. De fato, quando os
auditores chegaram à mineradora, os funcionários que reclamaram estavam sendo
demitidos.
O custo do trabalho escravo
A mina ficou interditada por três dias, o tempo necessário para que a empresa
tomasse as medidas de correção: lavaram e pintaram o local de descanso,
consertaram o banheiro, instalaram chuveiros e se comprometeram a respeitar a
carga horária dos funcionários. "Isso demonstra que manter os trabalhadores em
dignidade não era algo difícil para a empresa. Ao que parece, a Vale apenas não
queria ter esse custo”, aponta Campos.
Apesar de uma extensa ficha de problemas trabalhistas e impactos
socioambientais, essa é a primeira vez que a Vale é responsabilizada pela
exploração de mão de obra análoga à de escravo. A empresa é signatária do Pacto
Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo, afirma possuir uma política de
monitoramento de seus negócios e ter excluído de sua cadeia de fornecedores
usinas de ferro gusa que se utilizaram desse crime.
Apesar dos questionamentos da reportagem, a Vale não respondeu se a mesma regra
se aplica à terceirizada que foi flagrada ao cometer o crime dentro da
mineradora. *Portal Vermelho
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