Em
seu livro A Peste, Camus retrata uma comunidade que é acometida por uma
misteriosa epidemia. Primeiro morrem os ratos. Depois, as pessoas começam a
morrer, sem explicação. Em meio ao caos que ali se estabelece, enquanto alguns poucos
lutam para descobrir as causas da doença e auxiliar os sobreviventes, muitas
famílias seguem trabalhando, indo ao mercado e mesmo ao teatro. Desviam a pilha
de cadáveres, não questionam porque a família ao lado não está mais lá. Apenas
seguem suas vidas. O livro foi escrito em 1957, quando o mundo defrontava-se
com os acontecimentos da segunda guerra mundial. Talvez seu principal recado
seja a necessidade de compreendermos nosso tempo histórico, o que acontece ao
nosso redor. E agirmos para promover mudanças.
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Hoje, no Estado do Rio Grande do
Sul, o salário dos servidores públicos não está sendo honrado. A grande mídia,
porém, pula os cadáveres e segue em frente, dando notícias da Expointer e
exaltando os esforços do governo em pedir o perdão da dívida ao Planalto.
Agimos como se não houvesse o caos. Como se fosse natural retirar do
trabalhador sua fonte de sustento, sujeitando-lhe a pedir empréstimos,
generosamente oferecidos pelo banco do Estado, ou a humilhar-se junto aos
credores.
No livro de Camus, a convocação: “Se hoje a peste vos olha, é porque chegou o
momento de refletir”. Ao naturalizarmos o descumprimento da obrigação mais
grave de quem toma trabalho (o pagamento do salário), permitimos que o discurso
do mal menor se instale. A partir de agora, tudo é permitido, porque sequer a
contraprestação pelo trabalho que o Estado segue tomando, de nossos professores
e policiais, está sendo honrada. Como falar em reposição salarial? Como lutar
para não perder garantias duramente conquistadas? Como argumentar contra a
terceirização?
É urgente recuperarmos nossa capacidade de indignação e reconhecermos o calote.
O Estado fez uma escolha. Dentre tantos gastos, optou por cortar salários. Não
é razoável, não é necessário. É a maneira menos perigosa e mais fácil de
cooptar o sentimento de todos, reforçando o discurso de que nada mais há a
fazer. Como nos ensina Camus, a peste, muitas vezes, tem feição humana.
Combatê-la implica evitar a postura de vítima e reconhecer a de carrasco.
Implica, acima de tudo, não se acostumar ao mal, denunciá-lo e enfrentá-lo.
*Dra. Valdete Souto Severo
Juíza do Trabalho do TRT da 4ª Região (RS) |