Ainda que a reforma não altere a forma como o trabalho escravo é
caracterizado pela legislação, o texto traz várias mudanças na
Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) que afetam o combate ao crime.
Entre elas, estão a ampliação da terceirização, a contratação de
autônomos de forma irrestrita, e a possibilidade de aumentar a jornada
de trabalho e de reduzir as horas de descanso.
"As mudanças criam condições legais e permitem que a legislação
banalize aquelas condições que identificamos como trabalho análogo ao
escravo", afirma o auditor fiscal do trabalho Luís Alexandre de Faria.
À frente da Coordenadoria Nacional de Erradicação do Trabalho Escravo do Ministério Público do Trabalho (Conaete),
o procurador Maurício Ferreira Brito chama a atenção para os direitos
que poderão ser negociados entre patrões e empregados, o chamado
"negociado sobre o legislado". Segundo ele, "a depender do que se
negocie, você pode legalizar práticas do trabalho escravo".
De acordo com a legislação brasileira, quatro elementos podem
caracterizar o trabalho escravo: condições degradantes de trabalho,
jornadas exaustivas, servidão por dívida e trabalho forçado.
Veja os pontos da reforma trabalhista que devem dificultar o combate ao crime:
Terceirização
A ampliação da terceirização para as principais atividades das
empresas, aprovada em março pelo Congresso Nacional e detalhada pela
reforma trabalhista, é apontada pelos especialistas como a principal
mudança que deve dificultar o combate ao trabalho escravo.
"A nossa experiência de combate ao trabalho escravo mostra que todos
os resgatados são contratados por intermediários que já são autônomos ou
terceirizados, e quem contrata busca se esquivar da responsabilidade",
afirma Brito.
A reforma deve aumentar a cadeia de empresas terceirizadas,
distanciando o trabalhador de quem efetivamente controla a produção. Com
as novas regras, segundo Faria, aumentará a prática de empresas
terceirizadas que contratam outras empresas, a chamada "quarteirização".
"Será mais difícil que a gente identifique quem é o real empregador",
afirma.
Na indústria do vestuário, por exemplo, o trabalhador encontrado em
condições análogas à escravidão normalmente está em uma oficina de
costura subcontratada por uma empresa de confecção que já é terceirizada
de uma grande marca. "A explicação que as grandes empresas dão sempre é
‘eu não sabia de nada’, porque se referia a uma empresa terceirizada.
Com as mudanças trabalhistas, isso vai piorar", afirma Faria.
Autônomos
A ampliação das formas de contratação de profissionais autônomos é considerada, pelos especialistas ouvidos pela Repórter Brasil,
como uma "ampliação da terceirização". Ela permite que autônomos sejam
contratados de forma contínua e exclusiva. Assim, o empregador pode
privar o trabalhador dos seus direitos básicos.
Jornada de trabalho
A reforma trabalhista permite que negociações coletivas ampliem a
jornada de trabalho, que pode chegar a 12 horas diárias, e reduzam o
intervalo de descanso. Esses acordos teriam predominância sobre alguns
pontos da legislação trabalhista.
A jornada exaustiva, que vai além de horas extras e que coloca em
risco a integridade física do trabalhador, é um dos pontos que podem
caracterizar uma situação de trabalho escravo. Ainda que nem toda
jornada de 12 horas possa configurar o crime, esse aumento pode
banalizar a sua ocorrência. "Nenhuma jornada superior a oito horas pode
ser habitual (salvo exceções negociadas em acordos coletivos). A reforma
cria um argumento de resistência e de disseminação da fraude pelos
escravistas", diz o juiz do trabalho da 15ª região Marcus Barberino.
Já Faria destaca que a presença de sindicatos nessas negociações não
garante dignidade aos trabalhadores, pois existem organizações sindicais
que funcionam como "aliciadores de mão de obra". Ele exemplifica com o
caso da Cofco,
multinacional chinesa autuada por explorar trabalho escravo em abril
deste ano no Mato Grosso. No caso, a negociação coletiva com a presença
do sindicato sequer coibiu condições que caracterizam o trabalho
escravo. Para Faria, com a reforma, casos como esse poderiam ser ainda
mais comuns.
Ambientes insalubres
A reforma trabalhista estabelece que um acordo coletivo pode alterar o
"enquadramento do grau de insalubridade" de um ambiente de trabalho e
prorrogar jornadas "em ambientes insalubres". Atualmente, essas mudanças
necessitam da licença prévia das autoridades competentes do Ministério do Trabalho.
Faria lembra que há insalubridade em todos os casos de trabalho
escravo encontrados nas indústrias de vestuário e na construção civil.
Esses setores, onde são encontrados a maior parte dos casos de trabalho
escravo urbano, devem se tornar ainda mais hostis com a reforma.
"Combinado com a jornada exaustiva, essas mudanças podem ampliar as
situações análogas ao trabalho escravo", diz o auditor fiscal. *Repórter Brasil Foto: MTE
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