A juíza Herika Machado da Silveira Fischborn se referia a
156 trabalhadores que não recebiam salários há pelos menos dois meses e tiveram
seus documentos retidos pelos donos da fazenda onde colhiam maçãs, em abril de
2010.
Por lei, o empregador é obrigado a devolver a carteira de
trabalho de um funcionário em até 48 horas após a assinatura do documento.
Porém, segundo a juíza, a infração resultou em um suposto "benefício à
sociedade".
"O fato de reter a CTPS (carteira de
trabalho)somente causa, na realidade, benefício à sociedade. É cruel isto
afirmar, mas éverdadeiro. Vive-se, na região serrana, situação limítrofe
quanto a este tipo de mão deobra resgatada pelos auditores fiscais do
trabalho que, na realidade, causa dano àsociedade," escreveu a juíza
na sentença.
Sem dinheiro, documentos e transporte, os trabalhadores não
conseguiam voltar para suas casas no interior do Rio Grande do Sul, de onde haviam
saído com promessas de emprego. Eles sequer conseguiam chegar à cidade mais
próxima, São Joaquim, a 40 quilômetros da fazenda onde trabalhavam, por estrada
de chão.
Diante do caso, auditores fiscais do trabalho constataram o
cerceamento de liberdade, suficiente para caracterizartrabalho análogo ao
escravo, como define o artigo 149 do Código Penal. A juíza, porém, anulou parte
dos autos de infração registrados pelos auditores. Segundo a magistrada, eles
agiram "de forma cruel" ao permitir que os trabalhadores voltassem
"ao ciclo vicioso de trabalho inadequado, vício, bebida, drogas, crack,
crime e Estado passando a mão na cabeça".
Juíza pede que Polícia Federal investigue auditores fiscais
A magistrada não só anulou parte da operação dos auditores
fiscais do trabalho, mas também pediu que a Polícia Federal os investigasse.
Segundo Fischborn, eles "praticaram crime" porque "forçaram,
inventaram e criaram fatos inexistentes".
Ao negar os problemas encontrados no local, a juíza citou o
procurador Marcelo D’Ambroso, que, durante a fiscalização, questionou a
existência de trabalho escravo na fazenda.
O procurador, hoje juiz do trabalho, teria dito que
"não foi constatada a presença de barracos de lona ou choupanas para
acomodação dos trabalhadores, uma das características típicas do trabalho
escravo contemporâneo".
Procurado, D’Ambroso não atendeu ao pedido de entrevista da
Repórter Brasil.
As cenas descritas pelos auditores fiscais e as fotografias
tiradas na fazenda, porém, mostram que os alojamentos não se encaixam nos
padrões mínimos determina dos pelo Ministério do Trabalho, que devem nortear o
trabalho dos auditores nessas fiscalizações.
Em uma das regiões mais frias do Brasil, os trabalhadores da
fazenda moravam em um barracão de alvenaria, em camas com pregos expostos, sem
lençóis ou cobertores, e em colchões de espumas desgastadas.
Segundo a descrição feita à época, "os banheiros não
possuíam portas e eram integrados aos quartos, fazendo com que a água do banho
escorresse por debaixo das camas e aumentasse a umidade do local." Ali,
também não existiam sequer vassouras e outros equipamentos de limpeza.
Lilian Rezende, a auditora fiscal que coordenou a ação, diz
que não inventou fatos, e que sequer foi ouvida pela juíza, que teria extrapolado
as suas funções. "(É um processo) que desde o início me condena de pronto,
sem permitir minha defesa."
Neste mês de setembro, a auditora levou o caso – cuja
sentença foi proferida em março – ao Conselho Nacional da Justiça, responsável
pela supervisão dos juízes em todo o país, e à Comissão Nacional para a
Erradicação do Trabalho Escravo (Conatrae), vinculada à Secretaria de Direitos
Humanos do Ministério da Justiça.
Em sua defesa, a auditora lembra que o dono da fazenda foi
governador de Santa Catarina e deputado federal em 1988. Henrique Córdova
esteve à frente do governo entre 1982 a 1983, pelo então Partido Democrático
Social (PDS), criado a partir de ex-integrantes da Arena, partido de
sustentação da ditadura militar.
O empregador hoje é defendido por Ângela Ribeiro, ex-juíza
da Justiça do Trabalho em Santa Catarina.
Procurada, a advogada não respondeu às ligações e e-mails da
reportagem. A assessoria de imprensa do Tribunal Regional do Trabalho também
afirmou que a juíza Herika Fischborn não iria se pronunciar, pois estava
afastada do tribunal.
Outra juíza já havia derrubado autos de infração
A decisão de Herika não é a primeira a favor do empregador.
O trabalho de fiscalização já havia sido derrubado por outra juíza do trabalho
de Santa Catarina, em 2012. Na ocasião, a magistrada anulou a caracterização de
trabalho análogo ao de escravo.
O caso chegou ao Tribunal Superior de Trabalho, que devolveu
o processo novamente para as instâncias inferiores, em Santa Catarina. O
tribunal pediu que os 24 problemas encontrados pelos auditores fossem
analisados separadamente, e que os juízes não entrassem no mérito do que
definia ou não o trabalho escravo.
Diante dessa sequência de decisões judiciais, o empregador
não responderá na Justiça pelo crime de redução de pessoas a trabalho análogo
ao de escravo. Já os auditores fiscais são os únicos que continuam a ter que se
defender nesse caso. *RBA |