Cidadania | 21/09/2017 | 13:09:13
Patroa negra lidera piquete que conta a história de seus ancestrais
Maria Elaine, patroa do piquete O Mocambo
 

Maria Elaine Rodrigues Espíndola é mulher, negra e patroa de um piquete do Acampamento Farroupilha. A satisfação com o posto, evidente no sorriso com que recebe quem chega, tem razão de ser. Onde mais ela poderia contar a história de seus ancestrais, os Lanceiros Negros, que lutaram na guerra que não era deles, mas que os permitia sonhar com a liberdade? Como mestre griô, uma guardiã da memória, ela utiliza o espaço, respeitando as tradições farroupilhas, para cumprir esse papel: preservar e transmitir as tradições dos negros gaúchos.

“Eu respeito sempre porque eu também me sinto incluída nessa cultura. Eu também respiro esse ar rio-grandense, eu também tomo o chimarrão e amo essa veste. Posso não entender totalmente a veste da mulher da fazenda, mas lá de trás, da lida, do trabalho, eu também aprendi”.

Maria Elaine é patroa do piquete O Mocambo, ligado à associação comunitária de mesmo nome que representa moradores da Cidade Baixa e arredores. Criada entre as décadas de 1970 e 1980, ainda sem esse nome, a associação tem por objetivo preservar a história do bairro que originalmente foi um reduto de negros de Porto Alegre. Desde os anos de 1950, 1960, porém, grande parte dos negros que habitavam a região acabaram passando por um processo de remoção liderado pelo Estado – o mais notório deles foi a remoção da comunidade da antiga Ilhota para a atual Restinga – ou, com o valorização dos imóveis da região, mudando-se para áreas em que a moradia era mais acessível.

“As famílias que constituíam a entidade, aos poucos foram se distanciando no próprio bairro, e esse processo de exclusão fez com que o poder público levasse muitas delas para a própria Restinga. Mas alguns não foram, e ficaram resistindo”, diz Maria Elaine. “Quando a gente percebeu que estávamos nos separando, fomos ao OP [Orçamento Participativo] pedir um local para contarmos a nossa história nesse bairro”, complementa.

Em 2004, o Mocambo recebeu permissão da Prefeitura para usar as instalações do número 1.530 da Av. Loureiro da Silva como centro cultural para realizar esse trabalho. Na mesma época, por iniciativa de seu esposo, Cláudio Espíndola, natural de Pelotas, iniciou um trabalho para que a entidade montasse, “com muita dificuldade”, um piquete no Acampamento Farroupilha. Maria Elaine lembra que o primeiro espaço sequer tinha cobertura, apenas uma lona os protegia da chuva.

Cláudio foi o primeiro patrão, posto que ocuparia por alguns anos até adoecer – ele viria a falecer em 2009. Inicialmente, o cargo foi herdado por um homem, mas, no ano seguinte, Maria Elaine acabou assumindo a função. “Nós também temos que ficar e assumir, enquanto mulheres, porque somos a maioria na entidade”, diz. Ela conta que, em 2017, já está em sua sexta ou sétima edição do Acampamento como patroa. Sua primeira preocupação, sempre, é a cobertura, em respeito às dificuldades que tiveram naquela primeira participação.

Se o negro já é raro no Acampamento, uma mulher negra e patroa, é ainda mais. Maria Elaine sentiu isso, mas não se deixou intimidar. “Quando tu vem a primeira vez, parece que tem que se justificar. Estou vindo porque perdi o meu marido e quero continuar o legado dele. E tu precisa de apoio, não só dos teus, mas da própria vizinhança, para que ela te perceba também com honradez. E, nesse momento que te percebe como uma mulher que está ali lutando, sabe que muda um pouco a relação. Independente de a palavra patrão já dizer tudo, aos poucos, muito timidamente, eu fui me apresentado como a patroa”.

Apesar disso, ela conta que ainda tem gente que chega na porteira e pergunta pelo patrão. Ela levanta, vai em direção à porta, dá bom dia e se apresenta como patroa. “Muitos se surpreendem”, diz. No entanto, destaca que o número de mulheres no posto vêm crescendo. Esse ano, já são mais de 30, fora as que “organizam tudo” nos bastidores, observa.

Preservação da história negra

Maria Elaine afirma que, hoje, o piquete O Mocambo também cumpre um papel importante na preservação da história do negro no Rio Grande do Sul. Aquela que por muitos anos não esteve presente na Literatura – e não está em muitas das “versões oficiais” –, mas que foi sendo transmitida pela oralidade de família a família, e assim conseguiu ser preservada. No último domingo (17), a atividade realizada pelo piquete como parte da programação turística do Acampamento lembrou os Lanceiros Negros, corpo de soldados formado por escravos libertados para lutar ao lado do exército farroupilha.

“Aqui é um lugar para celebrar a auto-estima desse povo que, mesmo não vencendo a guerra, se infla por ter estado nela com a sua coragem. Em que lugar nós vamos discutir a coragem desses homens sem nome que o todo da história chamou de Lanceiros Negros? Tem que ser aqui também, para que lado a lado, aos poucos, também seja ‘concedido’ o reconhecimento de que o meu povo, a minha etnia, lá atrás, também contribuiu numa guerra que não era deles, dos seus antepassados, sonhando em serem libertos”, afirma Maria Elaine ao destacar que, muito do trabalho que vem sendo feito pelos historiadores mais recentes para reconstituir o papel dos negros na Revolução Farroupilha, hoje já registrado na literatura, deve-se justamente à preservação da história através da oralidade.

Nascida em 1947, ela integrou a primeira geração de sua família em que todos os cinco irmãos foram alfabetizados. Após concluir o colégio, virou professora. Chegou a pensar em ser freira para continuar os estudos, única chance que tinha na época. Acabou fazendo um curso para dar aulas de braile, sendo professora na área até sua aposentadoria. Também é artista plástica. Foi uma das responsáveis pela obra O Tambor – primeira obra pública realizada pelo movimento negro organizado na Capital –, inaugurada em 2010 na Praça Brigadeiro Sampaio, antigo Largo da Forca, onde os negros que fugiam em busca de liberdade eram levados para morrer na origem da cidade.

Líder comunitária, com atuação em conselhos de saúde, mas também uma mestre griô, figura na cultura afro que tem o papel de ser a “guardiã da memória” e transmiti-la para as gerações seguintes. É com essa responsabilidade que Maria Elaine decorou o piquete O Mocambo com itens e imagens que remetem à ancestralidade africana e ao passado dos negros no Rio Grande do Sul. Um dos quadros alude às rainhas africanas. A patroa faz questão de lembrar que os negros são descendentes de reis e rainhas. Mas também há peças que lembram o passado doloroso da escravidão. O marcador de gado que era usado tanto no lombo dos animais quanto de humanos, que à época não eram considerados cidadãos. O antigo pente que era aquecido no fogo para alisar os cabelos de gerações de negros. Há ainda peças que homenageiam a cultura de seus ancestrais, misturados com elementos de crenças indígenas e cristãs, como a Nossa Senhora Negra que adorna a mesa do piquete. “Nós não estamos nessa história? Estamos. Então temos que dizer que esse negro é gaúcho e esse gaúcho é negro”, afirma.

Lanceiros Negros

Se a história oficial não lhes deu um nome, Maria Elaine diz que foram buscar na figura de um homem chamado Salvador, que depois da guerra foi ao Rio de Janeiro, se alistar no Exército brasileiro, um símbolo para contar as histórias dos demais Lanceiros Negros – senão aquela que ele vivenciou de fato, mas como um arquétipo das versões que foram sendo transmitidas pela oralidade ao longo das décadas. “Os Lanceiros sem nome, tu não pode dizer que sentimento eles tiveram. Então cumpre a mim, com essa minha alma também de resgate, poder pensar e avaliar o que será que sentiu o bisavô do meu pai, o tataravô, lá atrás, nesse período de guerra, e buscar alguém que conte isso”.

O tema deste ano da Semana Farroupilha é “Farroupilhas: idealistas, revolucionários e fazedores de história”. No site oficial, há uma lista de nomes a serem reverenciados. Para Maria Elaine e O Mocambo, essa foi uma oportunidade de contar a história dos heróis desconhecidos, sem nome. “Aqui dentro, onde eu posso falar, eu reverencio os heróis como foi o tema proposto, mas esses heróis esquecidos também têm que vir. Porque eles não tinham nome, eu estou querendo dar um agora, ainda que seja um nome da minha imaginação, mas para que descansem em paz. Tantos filmes não fazem sucesso buscando isso, para que alguém se sinta representado? Eu estou fazendo isso, tenho esse compromisso de contar a minha história”, diz, destacando o papel da representatividade para que os negros sintam que pertencem a esse espaço, tão marcado por personagens brancos. “A gente quer dizer que aquele homem esquecido podia ser qualquer um de nós”.

O próprio nome Mocambo já é uma escolha por representatividade que não seja aquela consagrada na literatura oficial. No dicionário, a palavra significa lugar pequeno, sujo, escuro, para onde o escravizado fugidio ia para se esconder. “O Mocambo, nesse momento contemporâneo, é um local onde nos reunimos para discutir e dizer para o poder público a política que nós queremos para exercer cidadania. Não é mais um lugar de fuga”, diz Maria Elaine.

*Sul 21