Segundo diferentes autores que estudaram aquela Greve, um dos principais
motivos do sucesso da paralisação – que em julho deixou São Paulo às moscas,
como veremos em textos posteriores – foi a escolha acertada das bandeiras de
luta, com destaque para a exploração do trabalho infantil e o trabalho
opressivo, extenso e noturno das mulheres.
Este momento histórico pode servir de exemplo e motivação para a construção
da greve que se pretende realizar neste ano de 2017, um século depois.
O último 8 de Março, Dia Internacional da Mulher, com milhares de militantes
nas ruas, foi uma forte demonstração de que a reação popular aos retrocessos
que o governo Temer quer impor tende a aumentar. E, como disse o presidente da
CUT Vagner Freitas, em recente declaração, ”a proposta de reforma da
Previdência será o estopim da chama que vai levar o povo para as ruas”. Para
ele, é "só dizer claramente: sua aposentadoria vai acabar”. No próximo dia 15
de março, haverá a Paralisação Nacional contra o Fim da Aposentadoria.
Exploração e fome
A carestia e a falta de produtos alimentícios oprimiam os moradores da
cidade naquele 1917. Este foi o pano de fundo para que os sindicalistas
passassem a dialogar com o povo, por intermédio de comícios que se concentravam
especialmente nos bairros operários do Brás – onde atualmente fica a sede
nacional da CUT –, da Mooca, do Ipiranga, Cambuci e do Belenzinho.
À frente da organização dos trabalhadores estavam, inegavelmente, os
anarquistas. Italianos, espanhóis e portugueses e seus descendentes,
recém-chegados nas levas de imigrantes que aportavam no Brasil em busca de
trabalho – escasso na Europa, profundamente afetada pelos efeitos da Primeira
Guerra Mundial – e para substituir a mão de obra escrava, depois da libertação
oficial, mas não total, dos negros.
Os trabalhadores e trabalhadoras que ainda permaneciam no campo pouca
atuação tiveram na Greve Geral de 1917, pela distância geográfica e pela quase
total ausência de organização coletiva.
Saques
O problema da falta de comida foi atacado pelos rebelados na base do que os
anarquistas chamam de "ação direta”. Para combater os "açambarcadores” (termo
da época que poderia ser substituído pelo atual "atravessadores”), armazéns
foram saqueados. O caso mais simbólico ocorreu no dia 11 de julho, com a greve
já em curso, em ataque aos estoques do Moinho Santista, na Mooca.
Trigo, essencial para a produção de pão, era um dos itens mais cobiçados.
Parte desse produto era direcionada aos países europeus conflagrados, pois o
preço de exportação era mais alto.
Imprensa apoia
A imprensa, mesmo aquela ligada aos patrões, apoiou as iniciativas de ação
direta. As exceções, segundo a pesquisadora Christina da Silva Roquette
Lopreato, autora da tese de doutorado "O Espírito da Revolta – a Greve
Anarquista de 1917”, foram os diários "A Platea”, "Correio Paulistano” e
"Jornal do Comércio”, ligados ao partido conservador e hegemônico do Estado, o
Partido Republicano Paulista.
O governador Altino Arantes, por sua vez, atribuía as ações a "baderneiros”
e, argumento mais incisivo, pois apontava para o velho fantasma do inimigo
externo, a "elementos estranhos” e espécies "exóticas”, não naturais ao solo brasileiro.
A repressão teve entre seus expoentes figuras hoje homenageadas com nomes de
ruas e até de bairros, como o delegado Rudge Ramos.
Crianças e mulheres escravizadas
Exposta a questão da carestia e da ausência de alimentos, os próximos passos
da ação dos anarcossindicalistas foram atacar, especialmente nas páginas dos
jornais libertários e anticlericais "A Plebe” e "A Lanterna”, o uso da mão de
obra infantil e adolescente nas fábricas e o trabalho noturno das mulheres, que
além da exploração laboral, ainda eram vítimas de assédio sexual nas fábricas.
Com o apelo emocional aos pais, criticando-os por aceitarem suas demissões e
se deixarem substituir pelos próprios filhos e esposas, com salários mais
baixos (mulheres ganhavam a metade e as crianças, 10%), os anarquistas, seus
jornais e comícios emocionaram a população.
A questão das meninas e meninos – estes em maior número nas linhas de
produção – chamou a atenção dos jornalistas, especialmente de "A Gazeta”, que
numa série de reportagens acompanhou a entrada e saída das crianças nas
fábricas, demonstrando toda a miséria representada pela situação.
"Trabalho das 7 da noite às 6 da manhã, recebendo pelas 11 horas de serviço
1$100 (réis). À meia-note permitem que eu descanse 25 minutos, tempo
em que destino em parte a uma ligeira refeição. Quando um menino vem a ter
muito sono e larga o trabalho indo dormir alguns minutos escondido, acordam-no
com um banho de água fria”, narra um menino de 12 anos entrevistado por "A
Gazeta”. Ele ainda diz que "nos mandam esbofetear e dar pontapés.
Batem-nos sempre com o balão, que é um pedaço de pau envolvido num pano verde”.
Sendo mesmo esse ou não o vocabulário e a narrativa precisa do menino
entrevistado, a verdade de suas declarações podia ser vista em quaisquer
visitas às fábricas. Naquele mesmo ano, chocou a opinião pública a história de
um menino que dormiu na fábrica que, após breve pausa nas atividades, era
guardada por cães. Esse menino foi morto a dentadas.
Pauta de reivindicações
O movimento de 1917 teve um longo período de maturação. A primeira greve a
sacudir São Paulo ocorrera dez anos antes, sem a adesão de todas as fábricas e
estabelecimentos comerciais. Mas despertara a consciência política da classe
trabalhadora.
Em 1905, já pavimentando o movimento que culminaria em 1917, os
anarcossindicalistas substituíram gradualmente a importância das então
entidades assistencialistas a partir da fundação, em novembro, da Federação
Operária de São Paulo (FOSP), cuja sede ficava no número 110 de rua Líbero
Badaró.
Em 1917, as lideranças também organizaram ligas operárias em bairros como a
Mooca, Brás, Ipiranga. Funcionavam como células de debate e preparação de
materiais impressos de propaganda e agitação.
E prepararam uma versão atualizada da pauta de reivindicação da greve:
- fim do aumento dos gêneros alimentícios
- libertação de grevistas presos (16 haviam sido arrestados no saque ao
Moinho Santista, entre outros)
- fim do trabalho de menores de 14 anos
- fim do trabalho noturno para as mulheres e menores de 18 anos
- aumento de 35% nos salários inferiores a 5$000
- 25% de aumento para os demais salários
- 50% a mais para horas extras
Dialogando com a massa que não tinha emprego em empresas, os grevistas
também incluíram a exigência de proibição de despejos por falta de pagamento de
aluguel, caso os proprietários não aceitassem uma redução de 30% nos preços
dessa despesa.
Um outro 9 de julho
A capital paulista tem uma grande avenida chamada 9 de Julho. Trata-se de
uma "homenagem” à tentativa da elite cafeeira, em 1932, de combater o governo
de Getúlio Vargas.
Porém, o ano de 1917 guarda um 9 de julho bem diferente, popular e
classista. De triste memória, mas alavancador definitivo da Greve Geral que
parou a cidade. Neste dia, o sapateiro espanhol José Ineguez Martinez foi morto
pelas forças de repressão.
Naquele mesmo dia, um grupo de grevistas havia impedido uma carroça da
Companhia Antarctica Paulista de transportar cerveja, travando-a diante da sede
da fábrica, na hoje avenida Presidente Wilson, Mooca. Foi a senha para a
polícia partir para a repressão selvagem.
No dia seguinte, o féretro de José Ineguez partiu do número 91 da rua
Caetano Pinto – onde fica a atual sede da CUT Nacional, no número 575 – e,
acompanhado por milhares, dirigiu-se ao cemitério do Araçá, nos altos do bairro
do Pacaembu. Ao longo do trajeto, mulheres compunham a comissão de frente,
carregando bandeiras vermelhas anarquistas. Paradas foram feitas no caminho
para acalorados comícios.
Antes de o caixão descer à sepultura, três lideranças fizeram discursos – em
português, espanhol e italiano, as línguas operárias da cidade. Os jornais da
época também registraram emocionante discurso de "uma mulher vestida de preto”
– sem que seu nome fosse descrito – que afirmou ter sido o sapateiro "vítima
dos mantenedores da ordem, que de par com os exploradores do nosso trabalho,
investiram brutalmente contra os que reclamavam pacificamente aquilo que leis
permitem”.
Parou geral
A cidade, que já estava em greve, parou nos três dias seguintes. Bondes,
quando rodavam, o faziam sem passageiros. Todas as categorias cruzaram os
braços, segundo relatos da imprensa da época. O que começou nas indústrias
têxteis – especialmente na maior de todas, o Cotonifício Crespi, do irredutível
conde Rodolfo Crespi, cujo nome hoje batiza o estádio do Juventus – alastrou-se
pela Companhia de Gás e pela Light, responsáveis pelo fornecimento de energia
da cidade, e suspendeu a produção de pães, distribuição de leite, cerrou as
portas do comércio e suspendeu as atividades de lazer, como os teatros.
"A Greve Geral se tornou possível
graças a uma conjugação de fatores, explorados com argúcia por experientes
militantes anarquistas”, diz trecho do livro de Christina Lopreatto. "Ela foi
resultado de um trabalho de vários anos de pregação doutrinária e de
incitamento à ação direta. Desde o raiar dos novecentos, os anarquistas vinham
se dedicando à tarefa de sacudir as energias adormecidas dos trabalhadores”.
Calculam-se em mais de 100 mil trabalhadores e trabalhadoras em greve, numa
cidade cuja população somava aproximadamente 550 mil habitantes.
Negociação
Os termos da greve e o atendimento a parte das reivindicações mobilizou a
cidade. Neste momento, os anarquistas já faziam alianças tácitas com os
comunistas e os socialistas, embora divergissem da estratégia de resolução
institucional – partidos, congresso, Estado – dos demais atores políticos.
Porém, consideraram a unidade importante naquele momento.
Diante da incapacidade de o governo do Estado e do próprio Brasil de
encaminhar uma saída negociada, um grupo de jornalistas notáveis propuseram a
criação de um Comitê de Imprensa para negociar o atendimento das negociações.
Falaremos deste ponto na próxima reportagem desta série.
*Isaías Dalle – CUT Nacional |