Não é razoável supor que um chefe de governo e uma grande bancada de
parlamentares fossem eleitos se prometessem, entre outras medidas: reduzir a participação da Petrobras no pré-sal, congelar gasto sociais por 20 anos, mudar a base curricular do ensino médio, legalizar toda terceirização irregular de mão de obra, impor uma reforma que remete as relações de trabalho ao século 19, reduzir as áreas de proteção florestal para beneficiar grandes proprietários de terra, entre outras intenções que ainda estão por vir.
O próprio PMDB de Michel Temer não teve coragem de apresentar sua
plataforma "Ponte para o Futuro” – que contém parte disso e de outros
projetos futuros – durante as eleições de 2014. Ao contrário, naquele
2014, Temer, ao lado de legendas como PSD, Pros, PP, PR e PRB, entraram
no barco da reeleição de Dilma Rousseff com objetivo de tirar proveito
do sucesso dos três governos anteriores.
Na convenção que há três anos ratificou a recandidatura Dilma, Michel
Temer discursou, afirmando que a eleição do ex-presidente Lula, em
2002, foi o segundo grande momento da democracia brasileira, depois da
Constituição de 1988. "A Carta foi um banho de democracia. E a eleição
de Lula em 2002 foi um segundo grande momento, ao começar a pôr em
prática requisitos de cidadania exigidos pela Constituição, como direito
a alimentação, saúde e educação para todos”, comparou, referindo-se aos
programas sociais privilegiados pela gestão petista a partir de 2003.
Leia aqui reportagem sobre o evento,
quando Temer assinalou ainda que, além de ter retirado mais de 42
milhões de pessoas da situação de pobreza extrema e de a chamada classe C
ter aumentado de 37% para 55% da população, os quase 12 anos de era
Lula-Dilma também representaram o crescimento da classe B de 7,6% para
12,5%. "Governamos para todos os brasileiros”, disse, ao defender a
presença de seu partido na coligação.
O esforço de Temer em jurar fidelidade àquele projeto de governo que
seria o vencedor nas urnas dali a alguns dias pode ser atestado também
no vídeo abaixo, em que o então vice leal discursa no Teatro da
Universidade Católica (Tuca) de São Paulo. No palco, Temer declara que a
"reeleição não se destina apenas a reeleger pessoas, mas a reeleger os
planos” que deram certo nos mandatos anteriores. "Quando verificamos o
que Lula fez, primeiro, e o que a Dilma vem fazendo, nós verificamos que
nosso adversário diz: Bolsa Família, vamos continuar; Minha Casa Minha
Vida, vamos continuar; Pronatec, vamos continuar; o Fies, vamos
continuar; Brasil Carinhoso, vamos continuar… Ora, se até a oposição nos
aprova, para que mudar?”. O golpe
Para derrubar o governo às custas do qual se elegeram,
PMDB, PSD, Pros, PP, PR e PRB se uniram ao PSDB e DEM para adotar o
programa que havia sido derrotado nas urnas. Destituir Dilma do cargo
foi, portanto, o primeiro de uma sucessão de golpes que ainda tem no
roteiro: reforma da Previdência, reforma tributária sem taxação dos mais
ricos, transferir o poder de demarcação de terras indígenas do
Executivo para o Congresso, anular titulações e reconhecimentos de
terras quilombolas, debilitar as políticas públicas de combate ao
trabalho escravo e infantil, acelerar o desmonte de bancos e empresas
públicas.
Além dessas medidas, a base que dá sustentação ao golpe
pretende ainda promover uma reforma política praticamente sem discussão
com a sociedade, dificultando uma renovação da atual composição do
Congresso. E, quem sabe, instituir uma mudança no sistema de governo de
modo a neutralizar poderes do futuro presidente por meio de um regime
parlamentarista. O objetivo: reduzir os poderes do presidente que vier a
ser eleito em 2018 e manter ou ampliar a influência do poder econômico
nas decisões do país – uma vez que o poder do dinheiro empresarial
responde pela eleição da maioria no Parlamento, o que faz do Legislativo
um poder descolado da realidade brasileira.
O projeto intitulado "Ponte para o Futuro” foi apresentado
pelo PMDB no final de 2015 incorporando propostas antigas do PSDB e DEM.
EÂ tem como características a redução do Estado e a liberalização da
economia. É parte ainda das estratégias o estabelecimento de uma agenda
de "cronograma para avaliação das políticas públicas vigentes” (o que
levou a alterações como a desconstrução do programa Bolsa Família, entre outros programas de inclusão social).
Outro trecho do programa destaca a execução de uma política de
desenvolvimento centrada no capital privado, por meio de transferências
de ativos, concessões amplas em todas as áreas de logística e
infraestrutura e retorno ao regime anterior de concessões na área de
petróleo. E para quem esperava que as mudanças seriam construídas de
forma lenta e gradual, ou que teriam tempo de ser construídas até 2018,
está aí o ritmo como que governo Temer e Congresso respondem.
Para o cientista político Alexandre Ramalho, esse ritmo de mudança
revela a sintonia da agenda com os interesses e a pressa de grupos
formados por representantes do empresariado e do agronegócio. "Esse
grupo barganhou várias vantagens nas últimas reuniões com o Palácio do
Planalto e se assume como tropa de choque dos desejos do mercado
financeiro. Revela, mais ainda, que os interesses elencados no programa
do PMDB lá atrás estão sendo todos cumpridos e a oposição precisa ficar
atenta”, afirma Ramalho.
O senador Roberto Requião (PMDB-PR), voz dissonante de seu partido,
diz acreditar que "está nítido esse projeto de poder que representa um
desmonte completo do que foi construído nos últimos anos”. Requião foi
um opositor ferrenho da proposta que mudou as regras dos royalties do
pré-sal. Autor de um texto substitutivo que tentou mitigar as ameaças
representadas pela proposta, o senador aponta interesses geopolíticas
internacionais para a baixa no preço do barril de petróleo e considera
que a mudança das regras parte de um plano entreguista das reservas
nacionais ao mercado internacional.
"Um exemplo claro do que está acontecendo é o retorno do país para o mapa da fome.
O governo que aí está só assumiu porque uma camarilha resolveu tomar o
Palácio do Planalto a qualquer custo com um propósito específico, o de
desconstruir o Brasil. Estamos sendo vistos mundo afora como um país que
vive um retrocesso. Só no momento em que o povo brasileiro reagir, e
está demorando para reagir, vamos conseguir colocar tudo nos trilhos
outra vez”, destaca o deputado Wadih Damous (PT-RJ).
Damous chama a atenção para as caravanas que o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva vai
iniciar ainda neste mês. A seu ver, a expectativa é que as
caravanas sirvam de exemplo para que as pessoas também se mobilizem
contra as medidas amargas em implantação.
Ameaças diversas
Da mesma forma, economistas alertaram sobre a emenda que estabeleceu
um teto para os gastos públicos. Aprovada para limitar durante 20 anos o
ritmo de crescimento das despesas da União à taxa de inflação medida
pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), a emenda
constitucional que resultou da matéria ainda não teve os efeitos
desejados. E o governo estima terminar o ano com déficit de R$ 129
bilhões.
Em estudo intitulado "Austeridade e Retrocesso”,
divulgado no ano passado, economistas de instituições diversas
analisaram a medida como ineficaz para a retomada do crescimento, pelo
fato de reduzir os investimentos estatais e a renda do trabalho em um
momento de crise.
"O congelamento (dos gastos) não ajusta a questão fiscal do Brasil,
não traz o crescimento econômico e, no fundo, traz outro projeto de país
que não é o que está colocado na Constituição de 1988”, avaliou o
economista e professor da Unicamp Pedro Linhares Rossi, para quem a
medida não servirá para equilibrar as contas do Estado brasileiro,
conforme foi alegado durante sua tramitação no Congresso.
Em relação à reforma do ensino médio, também bastante criticada por
abrir espaço para o ensino privado no país, as distorções observadas
foram gritantes, conforme análise do coordenador-geral da campanha pelo
Direito à Educação, Daniel Cara.
"A reforma divide os estudantes entre aqueles que vão ter acesso a um
ensino propedêutico daqui por diante e aqueles que vão ter acesso a um
ensino técnico de baixa qualidade. A inclusão do ensino
profissionalizante, dentre as trajetórias possíveis para os estudantes
no novo ensino médio, vai empurrar os jovens com menor renda para
carreiras no subemprego, enquanto os mais ricos poderão focar os estudos
nas carreiras que desejam. É um retorno piorado ao que aconteceu na
década de 90”, disse ele
São posições de cuidado e atenção que convergem para um mesmo tema:
as mudanças impostas desde a saída da presidenta Dilma Rousseff do
governo. Outras iniciativas também consideradas preocupantes por parte
de políticos e economistas são a perda de direitos conquistados pelos
trabalhadores com a aprovação da reforma trabalhista e a negociação, nas
últimas semanas, de medidas que agradam diretamente à bancada do
agronegócio.
Reclamação do general
Um dos descontentamentos com o que tem sido feito pelo governo Temer
foi transmitido pelo comandante do Exército, general Eduardo Dias da
Costa Villas Bôas. O militar afirmou, em evento recente, que o potencial
de riquezas da Amazônia é estimado em US$ 23 trilhões e, por este
motivo, é contrário à venda de terras a estrangeiros, além de ver com
preocupação a exploração de minérios na região.
"Se fôssemos um país pequeno, poderíamos nos agregar a um projeto de
desenvolvimento de um outro país, como ocorre com muitos. Mas o Brasil
não pode fazer isso, não temos outra alternativa a não ser sermos uma
potência”, destacou o general, posicionando-se contrário às propostas em
curso em relação à região.
"O desmonte do Estado pode ser constatado pela compra de votos que
foi observada com o objetivo de livrar o presidente da denúncia contra
ele e pelas negociações espúrias para a votação de todas estas matérias.
Exemplo disso é o fato de que, no último ano, mais de um milhão de
estudantes universitários deixaram a faculdade. São outras prioridades
que estão em jogo. O atual Executivo não se importa com questões como a
crise do corte de verbas para as universidades públicas. O que se vê é
um pensamento remonta aos tempos do Império”, afirmou a presidenta do
PT, senadora Gleisi Hoffman (PR).
O líder do PT na Câmara, deputado Carlos Zarattini (SP), acha que,
apesar desse projeto de poder, o governo vai ter dificuldades de cumprir
com o prometido durante as negociações para blindar o presidente. E
como muita coisa pode não ser acatada, ao passo que vários parlamentares
aguardam tratamento diferenciado nos favores a serem recebidos pelo
Planalto, problemas na base devem aparecer.
Zarattini reiterou, entretanto, a necessidade de luta por parte da
oposição, para que sejam evitadas perdas ainda maiores. Motivo pelo qual
os oposicionistas intensificam pedidos para que todos os setores
tenham mais atenção com as propostas apresentadas e para que os
movimentos sociais vão às ruas. Até porque a agenda das matérias
emblemáticas que compõem o projeto de poder divulgado no ano passado
está em andamento. *RBA Imagem: Divulgação |