Em entrevista ao Sul21, Boaventura fala sobre as motivações do golpe e
defende que a democracia brasileira terá que ser defendida nas ruas.
"No próximo período, será preciso defender a democracia no Brasil, mas,
devido ao comportamento das instituições, será preciso defendê-la nas
ruas. As instituições têm que ser pressionadas a partir da rua. O que
queremos é que isso se dê dentro dos marcos democráticos, que já estão
muito abalados pelo golpe institucional, e que não se chegue a uma
confrontação do tipo da que está ocorrendo agora na Venezuela, com luta
de rua violenta”.
Sul21:Â O senhor participou, semana passada, de um debate
em Porto Alegre que teve como tema "democratizar a democracia”. Em que
medida a democracia precisa ser democratizada hoje no mundo? Em outro
debate realizado recentemente aqui em Porto Alegre, um economista disse
que o namoro do capitalismo com a democracia acabou com o desmonte do
Estado de Bem Estar Social. Concorda com essa avaliação?
Boaventura de Sousa Santos: Escrevi um livro,
publicado recentemente aqui no Brasil pela editora Boitempo (A Difícil
Democracia), onde apresento o argumento de que a socialdemocracia
europeia foi um produto histórico que se desenvolveu em um determinado
momento e em uma pequena parte do mundo (a Europa depois da Segunda
Guerra Mundial). Foi um momento em que o capitalismo fez algumas
concessões à democracia para garantir que os trabalhadores não se
revoltassem e não se deixassem seduzir pela opção socialista, que havia
do outro lado do Muro de Berlim.
Isso ocorreu depois de muita destruição. Cerca de 108 milhões de
pessoas morreram nas duas guerras mundiais. Há uma contradição evidente
entre democracia e capitalismo, na medida em que a primeira se assenta
na ideia de soberania popular e tem uma pulsão no sentido da
redistribuição de renda, enquanto a pulsão original do capitalismo é a
acumulação infinita, sem qualquer preocupação social. Em entrevista ao Sul21, Boaventura fala sobre as motivações do golpe e
defende que a democracia brasileira terá que ser defendida nas ruas.
"No próximo período, será preciso defender a democracia no Brasil, mas,
devido ao comportamento das instituições, será preciso defendê-la nas
ruas. As instituições têm que ser pressionadas a partir da rua. O que
queremos é que isso se dê dentro dos marcos democráticos, que já estão
muito abalados pelo golpe institucional, e que não se chegue a uma
confrontação do tipo da que está ocorrendo agora na Venezuela, com luta
de rua violenta”.
Por outro lado, tivemos tentativas de se opor a essas políticas
neoliberais. A primeira ocorreu na Grécia, a partir de um partido de
extrema-esquerda, o Siryza. Essa tentativa fracassou totalmente e o
Siryza foi humilhado, sendo obrigado a aplicar uma política de
austeridade completamente estranha ao seu programa.
No final de 2015, início de 2016, surgiu uma possibilidade de
Portugal ter também uma tentativa de recuperar elementos da
socialdemocracia a partir de uma união inédita em Portugal e com muito
poucos antecedentes na Europa entre a esquerda moderada do Partido
Socialista e a esquerda mais radical do Bloco de Esquerda e do Partido
Comunista. Foi uma solução extraordinária que tem mostrado uma
consistência muito grande. Ninguém acreditava que ela durasse mais do
que um ou dois meses. Já está durando um ano e todo mundo diz que ela
vai durar quatro anos.
Esse é o maior e mais claro desmentido neste momento na Europa à tese
de que não há alternativas às políticas neoliberais. Em Portugal, nos
disseram que se não fosse feita uma liberalização total do mercado de
trabalho e a privatização da Previdência, a economia não cresceria e o
déficit público aumentaria. Aconteceu exatamente o contrário. Esse
acordo de esquerda impediu a privatização da Previdência. As leis
trabalhistas em Portugal já foram muito liberalizadas em governos
anteriores do Partido Socialista e não era preciso aprovar novas
liberalizações.
Portanto, estancou-se as políticas de austeridade e procurou-se repor
o rendimento das classes trabalhadoras, especialmente dos setores em
situação mais precária, e das pensões mais baixas também. Além disso,
foram feitos alguns ajustes na política fiscal e iniciou-se a
recuperação de alguns serviços do Estado. Segundo as previsões das
agências de notação de crédito e dos ideólogos do neoliberalismo, essas
políticas seriam um desastre para Portugal.
Ao contrário dessas previsões, a economia está crescendo e o déficit
público diminuiu. Neste momento é um dos mais baixos da Europa, está
abaixo de 2%. O desemprego também diminuiu. Desde os anos 90, Portugal
não tinha uma taxa de desemprego tão baixa, está abaixo dos 10%. E o
índice de consumo dos portugueses é o maior dos últimos 20 anos. Isso
mostra um governo de esquerda, moderado é verdade, que aprendeu muito
com o caso grego e não foi para uma confrontação total com as
instituições europeias, optando por tentar explorar contradições
existentes na legislação europeia para por em prática uma alternativa.
Essa solução foi tão bem sucedida que o ministro das Finanças, que
presidiu a sua implementação, está sendo cotado para ser o presidente do
Eurogrupo, que reúne os ministros de Finança da Europa. Ou seja,
Portugal, de bom aluno, passou a bom professor. Isso mostra que o
neoliberalismo é uma farsa e também uma tragédia porque causa muito
sofrimento às populações, aumenta muito o desemprego e expulsamos do
país alguns dos nossos melhores jovens.
Sul21:Â Como foi a construção dessa unidade entre o Partido Socialista, o Bloco de Esquerda e o Partido Comunista? Boaventura de Sousa Santos: Entre esses partidos há
diferenças, mas há convergências. Durante todo o século XX, nós
maximizamos as divergências e minimizamos as convergências. Houve um
momento em Portugal, depois de uma experiência muito dolorosa de um
governo conservador e muito reacionário, em que a esquerda resolveu, ao
contrário de sua tradição, maximizar as convergências e minimizar as
divergências. Cada um manteve a sua identidade.
O Bloco de Esquerda é um partido muito diferente que o Socialista,
tem posições diferentes sobre o euro, a OTAN e outros temas. Eles
decidiram que esses pontos não fariam parte desse acordo, um acordo
limitado para conseguir construir uma governabilidade do país à esquerda
e mostrar que as políticas de austeridade da troika não eram a única
solução e tampouco a melhor situação. O capitalismo faz essa pressão
enquanto sabe que pode fazê-la. No momento em que souber que não é mais
possível fazer essa pressão, o capitalismo adapta-se. O capitalismo
adapta-se até sentir que é necessário que ele faça isso.
Sul21:Â Como você avalia a situação do Brasil hoje, cerca de oito meses após o afastamento da presidenta Dilma Rousseff?
Boaventura de Sousa Santos: Eu penso que o está
acontecendo no Brasil hoje é o caso paradigmático de uma intervenção
externa. Acho que foi fundamental no que ocorreu o fato de que o Brasil
era uma das forças importantes dos Brics, em aliança com China e Rússia,
que tentavam construir uma articulação alternativa ao capitalismo
global sob dominação dos Estados Unidos. A China é um parceiro no qual
não se pode tocar porque é um grande credor da dívida pública
norte-americana. Tenta-se neutralizar a Rússia pontualmente quando for
necessário. E era preciso eliminar a ameaça vinda do Brasil. Isso foi
feito através do golpe institucional. Não estou dizendo que não houve
erros internos, mas houve uma pressão externa muito grande em favor das
reformas.
Só quem é muito inocente não vê que estava tudo preparado. A esquerda
é que foi inocente e muito descuidada. As leis e medidas tomadas no dia
seguinte ao golpe, quando Michel Temer assumiu, mostraram que tudo isso
estava sendo preparado há muito tempo com a mesma orientação.
Certamente, algumas delas nem deve ter sido redigidas aqui no Brasil,
mas sim em Washington. Em certo momento, em razão dos desdobramentos da Operação Lava Jato e
de outros acidentes de percurso, começou-se a pensar que Michel Temer
não teria força suficiente para aprovar as reformas Trabalhista e da
Previdência. Cogita-se a hipótese de outro governo terminar esse
serviço. Mas é possível que ele permaneça até 2018.
Ninguém pode dizer o que vai acontecer. Neste momento, estão
exagerando as notícias sobre uma suposta retomada da economia para
mostrar que a crise é política e não econômica. Se ele tiver condições
de tocar as reformas naturalmente será usado para isso. Caso contrário,
tentarão outra forma. Farão isso a menos que o povo brasileiro através
de seus movimentos e partidos acorde e não deixe que isso ocorra.
Será um momento de luta, de luta pacífica espero, mas luta de rua. No
próximo período, será preciso defender a democracia no Brasil, mas,
devido ao comportamento das instituições, será preciso defendê-la nas
ruas. As instituições têm que ser pressionadas a partir da rua. Os
partidos de esquerda que estiveram no poder nos últimos 13 anos
desabituaram-se da luta de rua, da organização pacífica dos movimentos.
Por isso temos esse momento de, digamos, pausa, na reorganização dos
movimentos.
Penso que o que vamos assistir nos próximos tempos é a reorganização
da resistência e a luta política é que vai definir o futuro. O que
queremos é que isso se dê dentro dos marcos democráticos, que já estão
muito abalados pelo golpe institucional, e que não se chegue a uma
confrontação do tipo da que está ocorrendo agora na Venezuela, com luta
de rua violenta. Espero que isso não aconteça aqui no Brasil, mas é bom
que as forças democráticas estejam atentas. *Marco Weissheimer - Sul21 Foto: Guilherme Santos |