A outra face da crítica à polarização é a ideia
paradigmática de que o povo brasileiro "é ordeiro e pacífico". As
exigências de ordem e paz, de harmonia, nasceram no Brasil Colônia,
atravessaram o Brasil Império e se instalaram no Brasil República. Em nome
dessas ideias, dissidências foram massacradas, opositores foram exilados,
críticos foram calados. Em nome dessas ideias, a violência explícita ou
dissimulada das elites sempre procurou auferir a áurea de legitimidade,
proclamando-se ação necessária para harmonizar os conflitos banindo da cena
política e social os elementos "perturbadores", os
"indesejáveis", os "subversivos", os
"desordeiros", enfim, um rosário instrumental de adjetivações a
serviço do mando violento e excludente.
A crítica à polarização e a falta do combate cívico
virtuoso fizeram do Brasil o que ele é: um país sem presente e sem futuro; um
país incapaz de dar-se uma comunidade de destino. Foi esta dupla dinâmica que
fez com que alguém disse que, com a independência do Brasil, os portugueses não
perderam uma colônia, mas ganharam um reino. Esta mesma dinâmica fez com que a
proclamação da República fosse feita por um marechal monarquista, adoentado,
posto sobre um cavalo para liderar uma marcha militar, fazendo com que
ares publicanascesse sem povo, sem-terra e sem o pronunciamento de
um tumulto cívico que lhes desse uma origem efetivamente popular. A síntese
perversa deste ato foi captada pelas famosas palavras de Aristides Lobo que
afirmou que o povo assistia, "bestializado", aquele acontecimento sem
compreender o seu significado.
Exigir, neste momento, a despolarização, o debate
polido, as maneiras finas e educadas, significa exigir que o povo permaneça
bestializado. No Brasil, o povo sempre foi tratado como serviçal, como escravo,
como ignorante, como grosseiro, cujo único atributo seria trabalhar e servir.
As elites sempre se reservaram o monopólio do luxo, do dinheiro, dos vícios e
da corrupção. Pois bem. Nos momentos críticos, de incerteza acentuada acerca do
amanhã, essas elites mal-educadas, incluindo a intelectualidade que as servem,
exigem boas maneiras daqueles que nunca foram bem tratados. O povo e os
ativistas cívicos, precisam aprender a tratar com grosseria as elites
violentas, luxuriosas, vaidosas, corruptas, expropriadoras, sonegadoras, pois
esta é a forma polida que merecem ser tratadas por terem construído uma
sociedade injusta e brutalmente desigual.
É legítimo cobrar posicionamento
dos intelectuais
Chega a ser um acinte que os bem-falantes dos
livros e das mídias exijam despolarização, recato e polidez em uma sociedade
moralmente dilacerada, materialmente humilhada, culturalmente deserdada. É
preciso dizer não a essa exigência de despolarização que criou, cultiva e
dissemina o mito da democracia racial, sempre atualizado em cada momento
histórico com a manutenção de novas formas de existência de semilibertos dos
afrodescendentes e de extermínio dos índios.
Como exigir despolarização no momento em que a
democracia foi golpeada, em que os direitos sociais são destruídos, em que a
cultura, a educação e a saúde pública sofrem agressões e danos ruinosos? Como
exigir polidez quando a juventude está desesperançada e a velhice, temerosa
porque não se encontra ao abrigo das misérias e não tem amparo no momento em
que mais precisa dos serviços públicos da saúde? Como exigir diálogo com um
governo que é a face desnudada da corrupção, do machismo, da falta de recato e
da indiferença completa com a sua própria degradação?
Neste momento de desesperança é preciso cobrar dos
intelectuais, sim, um posicionamento acerca da situação política do país. Os
intelectuais são figuras públicas e, como tais, estão submetidos ao crivo do
público e às exigências demandadas pelo processo de formação da opinião
pública. É bem verdade que parcelas dos intelectuais se tornaram idiotas da
objetividade e se refugiam numa suposta neutralidade que não existe. Também é
verdade que parte da mídia conferiu o estatuto intelectual e de juízes da nação
a vendedores de consultorias, que são partes interessadas no doloroso ajuste
jogado sobre os ombros vergados dos mais pobres.
Mas convém lembrar que os intelectuais de todos os
tempos,dentre os mais representativos, a começar por Sócrates, Platão e
Aristóteles, chegando ao mundo moderno e contemporâneo, pugnaram pela cidade
justa, pela república justa, pela nação justa. Denunciaram as injustiças,
combateram as desigualdades, enfrentaram tiranias e ditaduras, sofreram
violências, exílios, prisões, quando não a morte.
Um intelectual autêntico não pode ser um acólito do
poder, um cortesão oportunista, um frequentador de palácios, um comensal dos
poderosos. Os intelectuais autênticos devem ser a voz pública dos reclamos de
justiça e, pela simbologia e representatividade que carregam, precisam
elevar-se acima dos outros para denunciar as mazelas do poder e dos poderosos,
de sua opressão, de suas arbitrariedades e de suas tendências contrárias à
liberdade.
Dentre todas as incompletudes humanas, dentre todas
as incompletudes do mundo, um poder que não esteja assentado sobre as virtudes
do povo e que não esteja a serviço do interesse comum, é a maior das
incompletudes. O poder do Estado é o organizador de todas as outras atividades.
E se ele não é virtuoso, desestrutura e destrói a nação, a sociedade, a
moralidade, o bem-estar, o desenvolvimento, a educação, os direitos, a cultura.
O governo Temer promove, hoje, este tipo de devastação
do Brasil. É um governo que precisa ser denunciado e removido. Para isto é
necessário o dissenso, a polarização e o conflito. Nas repúblicas democráticas
bem constituídas não é o consenso, não é a paz dos cemitérios, não é a
passividade que constroem bem-estar e boas leis. Somente as virtudes combativas
e o ativismo cívico são forças capazes de imprimir um outro rumo ao Brasil. *Aldo Fornazieri - GGN |